O brilho de um violino genial
Música brasileira perde Fafá Lemos
Hermínio Bello de Carvalho
Produtor musical
Luiz Morier – 9/9/03 |
Fafá e a amiga e cantora Zezé Gonzaga |
Dizem que tinha um gênio ruim. Mas quem o visitou num asilo onde se abrigou nos últimos anos parece ter encontrado um velhinho de bem com a vida. Fafá Lemos morreu no Rio, no último dia 18, aos 84 anos. Confesso que só o conheci da Rádio Nacional, nos anos 50. Eu com 16 anos e já reporterzinho de uma revista de rádio, ele brilhando ao lado de Chiquinho do Acordeon e do Garoto no célebre Trio Surdina. Lembro de um grande crítico, o Sylvio Tullio Cardoso, que era visceralmente contra violino e acordeon no samba. Que seriam instrumentos estrangeiros, como se o saxofone de Pixinguinha tivesse sido inventado, sei lá, por algum soprador de bambu de uma tribo indígena qualquer do Alto Xingu. Havia muito preconceito nessa época, e tanto Fafá quanto Chiquinho do Acordeon sofriam com esses disparates.
Imaginem se o Gabriel Grossi, discípulo direto do Maurício Eihorn, aparecesse com sua gaita de boca naquela época. Ia ser execrado. Nunca iria gravar umCai dentro, do Baden Powell e do Paulinho, samba que, aliás, a Zélia Duncan canta admiravelmente bem. Tinha mais: Fafá cantava bonito. Diria até, sem deitar muita dissertação, que o João Gilberto deve ter se inspirado nele para cantar daquele modo intimista.
Falam muito da influência que o Chet Baker teria exercido no ilustre baiano. Mas se esquecem de que algumas inflexões do Orlando Silva ainda são perceptíveis nesse grande inventor da bossa nova, o homem que fez a moderna moldura do movimento, enquadrando tanto Tom Jobim quanto Geraldo Pereira - mas que nunca gravou um Valzinho, o mais transgressor dos compositores brasileiros - e que o Orlando fez a ousadia de gravar em 1946 (e a Aracy de Almeida na década de 30). João, às vezes, é meio antiguinho.
Mas antiguinho o Fafá Lemos nunca foi. Suas arcadas no violino, de uma enorme musicalidade, de alguma forma fizeram uma pequena revolução na música instrumental - e nisso garanto que deve ter tido não só a influência como também o dedo do Radamés Gnattali.
Peguei aqui em casa uns discos antigos do Trio Surdina e copiei para o meu querido Maurício Carrilho levar para a Escola Portátil de Música, onde 400 jovens estudam a moderna linguagem do choro - e aprendem que um Fafá Lemos, embora esquecido pelas gravadoras e jamais tocado nas rádios, era um gênio.
Gênio que, ao voltar dos EUA, onde exercia outras atividades que não a música, gravou um LP ao lado da grande Carolina Cardoso de Menezes - uma espécie de Radamés de saias, e que morreu há uns três anos. Lembro que fui visitá-la num restaurante onde ia dar canja, ela que pediu US$ 10 mil para se apresentar no importantíssimo Chorando alto, valiosa iniciativa do Sesc paulista, que, impossibilitado de contratá-la, não teve a chance de apresentá-la. E se ela tivesse se apresentado com Fafá Lemos? Ia ser uma festa. Claro que estou falando de figuras que muitos de vocês nunca ouviram falar, sobretudo nessa faixa de 15/20 anos, que é inconseqüentemente rotulada de alienada.
Enfim, mesmo com pobre obituário, imagino a festança lá em cima: Chiquinho, Garoto, Carolina, Pixinga, Jacob - todos recebendo o grande Fafá, ele em sua cadeira de rodas que nem um super-homem, mas empunhando ainda o seu admirável violino, que nada tinha de cigano. Era coisa suprema que nem o Jascha Heifetz ou similares, que nem aquele francês, Stephanie Grapelli, que gravou com o Baden - e que era considerado um papa do instrumento. Diria melhor: cardeal, arcebispo, monsenhor, por aí. Papa mesmo, com direito a mitra, era mesmo o Fafá Lemos.
[30/OUT/2004]
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