quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Fafá e o micróbio por Moacyr Andrade 2004

Fafá e o micróbio



Moacyr Andrade



15.11.2004 | Carregava no apelido uma nota musical repetida e – dizia-se –
aos 9 anos já tocava Vivaldi. Na sua crônica de músico eclético, figuram a
Orquestra Sinfônica Brasileira e o Cassino da Urca. Ainda assim o violinista
carioca Fafá Lemos (Rafael Lemos Júnior, 1921-2004), morto dia 18 de outubro
sob indiferença aparentemente geral, só quebrada, até onde vi, por artigo de
jornal, generoso, de Hermínio Bello de Carvalho, não escapou de ser acusado
de superficialidade pela crítica que se acreditava mais intransigente.
Músico da noite na fase de mais evidência, ele próprio dono de boate em
Copacabana durante algum tempo, Fafá não iria muito além, segundo esse juízo
severo, do exibicionista que se realiza em malabarismos para a
condescendência de platéias boêmias. Em casa, diante do disco, a
receptividade se pautaria por critérios mais rigorosos.


Mas foi exatamente no disco que Fafá Lemos afirmou-se como o músico certo no
momento certo, em pelo menos três instantes especiais, imperecíveis, da
música popular no Brasil, as gravações de “Vingança” (Lupicínio Rodrigues,
1914-1974) e “Risque” (Ari Barroso, 1903-1964), por Linda Batista
(1919-1988), e de “Duas contas” (Garoto, 1915-1955), pelo Trio Surdina,
grupo de ponta que Fafá integrava juntamente com o violonista autor da
música e com Chiquinho do Acordeon (1928-1993). São canções que vararam o
milênio, as duas primeiras a aflorar a toda hora à boca do povo, a terceira
a circular de forma mais restrita, muito apreciada por iniciados e
estudiosos.


“Vingança” (“Eu gostei tanto/ tanto quando me contaram...”) talvez seja a
mais popular das composições de Lupicínio, mesmo que uma audição com certo
distanciamento possa excluí-la do rol das melhores (lista em que figura
certamente o outro lado do disco, “Dona Divergência”, samba-canção de
refinada construção melódica e poética). A força de “Vingança” parece vir
sobretudo da dramaticidade da interpretação de Linda Batista, a mais densa e
emocionada da farta discografia da cantora. As sutis arcadas do violino de
Fafá, na introdução e no intervalo entre a primeira e a segunda passagens da
intérprete, funcionam como contraponto ideal à tensão vocal elevada por
Linda ao limite. Claro, o êxito de “Vingança” não pode deixar de ser
relacionado ao ajuste de contas de natureza conjugal que então travavam o
compositor Herivelto Martins e a cantora Dalva de Oliveira por meio de
mísseis musicais que mobilizavam o público. O samba, que Lupicínio Rodrigues
fizera para outro contexto, foi cooptado para o arsenal de Herilvelto. Este
o gravou, à frente do Trio de Ouro, em 10 de abril de 1951 (RCA Victor,
lançamento em junho), com repercussão mínima. A consagração só veio com a
gravação, em 29 de maio de 1951 (RCA Victor, lançamento em agosto), de Linda
Batista, acompanhada por Fafá Lemos e conjunto.


Com “Risque” (“Risque meu nome do seu caderno/ pois não suporto o
inferno...”), o fenômeno, de certa forma, se repetiu. Gravado originalmente
por Aurora Miranda, não alcançou ressonância. Linda Batista, mais uma vez
apoiada na tocada elegante do violino de Fafá Lemos, gravou-o para a
aceitação geral em 28 de novembro de 1952 (RCA Victor, lançamento em março
de 1953). É sucesso até hoje, página fácil de todas as antologias do
cancioneiro amoroso. Mas tal como “Vingança” em relação à obra de Lupicínio
Rodrigues, o samba-canção “Risque” talvez não se possa incluir entre o
melhor de Ari Barroso. Para o próprio compositor, como informa seu biógrafo
Sérgio Cabral em “No tempo de Ari Barroso” (Lumiar Editora), tratava-se
apenas de “uma concessão às tendências modernas da música popular
brasileira, acusadas por Ari de desprezarem o seu ritmo, o seu telecoteco”.


“Duas contas” (“Teus olhos/ são duas contas pequeninas...”) é a única
composição para a qual Garoto fez letra e música. Mostrou o resultado a
Paulo Tapajós, diretor artístico da Rádio Nacional e dono da idéia da
formação do Trio Surdina, pedindo opinião. Disse a Paulo, segundo este
contou aos biógrafos do violonista (Irati Antônio e Regina Pereira, “Garoto,
sinal dos tempos”, Funarte, 1982), que temia uma reação negativa dos
críticos: “Você não reparou que os versos não rimam?” A ousadia poética –
posta no disco na voz de Fafá Lemos, que assim dobrou de função no trio,
acoplando ao violino o canto, inspirado no de Mário Reis – acabou louvada
por complementar as inovações harmônicas e estruturais que levaram “Duas
contas” ao sucesso, com inúmeras gravações posteriores (a pioneira está no
LP “Trio Surdina”, Musidisc, 1953). Figura entre as músicas mais admiradas
de Garoto, ao lado de “Gente humilde” (letrada a quatro mãos por Vinicius de
Moraes e Chico Buarque, bem depois da morte do autor) e do samba-canção
“Nick Bar”, trunfo de Dick Farney, com letra romântica insuspeitada do
humorista José Vasconcelos. Instrumentista e compositor sofisticado, Garoto
preferia o choro, presença mais significativa na sua obra (cerca de 100
músicas gravadas) e na atuação como solista na produção de outros autores. O
maior êxito, porém – talvez para desagrado de estetas autoproclamados que
tentam privatizá-lo como cult, da mesma maneira que se quis transformar
Dominguinhos em sanfoneiro pop –, foi um dobrado (polca-dobrado, no
rigorismo da etiqueta), “São Paulo quatrocentão”, homenagem à cidade natal
no quarto centenário, em 1954, feita em parceria com Chiquinho do Acordeon.
Lançado em novembro de 1953, por Garoto e sua Bandinha (denominação
improvisada de conjunto que incluía tuba, bombardino, trombone, flautim e
outros instrumentos típicos de lira municipal), o disco, selo Odeon, vendeu
mais de 700 mil cópias, marca que se manteve inatingida durante anos. Uma
versão com letra (assinada por Avaré) foi gravada em seguida, também na
Odeon, por Hebe Camargo, que sustentava então bem-sucedida carreira de
cantora.


Como Garoto, seu intérprete Fafá Lemos também cultivava o repertório
brasileiro de extração mais popular, a despeito da dualidade que o levava a
cultuar igualmente o jazz e à tentação de trabalhar nos Estados Unidos, onde
esteve por diversas temporadas, mais curtas e mais longas, ora ao lado de
Carmen Miranda ou de Laurindo de Almeida, ora a contribuir para a trilha
sonora de filmes nem sempre elogiáveis, como o inqualificável “Meu amor
brasileiro”, de Mervyn Le Roy, uma daquelas brincadeiras nas quais a América
do Sul aparece de forma caricata. Aqui, no entanto, entre uma viagem e
outra, os seus violinos de fabricação italiana ou alemã, afeitos aos
clássicos, o que tocavam e gravavam era por exemplo o baião “Delicado”, de
Waldir Azevedo, ou um velho samba esquecido, como esse “Meu guarda-chuva”
(Ubenor Santos-Amancio Morais) pleno de picardia malandra que Walter
Alfaiate também recordou em disco recente.


Deve ser aquele micróbio da nossa música, do qual Jackson do Pandeiro falava
referindo-se ao frevo.


editor@nominimo.ibest.com.br

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